sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

O louco



Nunca ouviram falar daquele louco que, à luz clara da manhã, acendeu uma lanterna, correu para a praça do mercado e se pôs a gritar incessantemente: «Ando à procura de Deus! Ando à procura de Deus!»
Estando reunidos na praça muitos daqueles que, precisamente, não acreditavam em Deus, o homem provocou grande hilaridade. «Será que se perdeu?», dizia um. «Será que se enganou no caminho, como se fosse uma criança?», perguntava outro. «Ou estará escondido?» «Terá medo de nós?» «Terá embarcado?» «Terá partido para sempre?», assim exclamavam e riam todos ao mesmo tempo.
O louco saltou para o meio deles e trespassou-os com o olhar. «Quem vos vai dizer o que é feito de Deus sou eu», gritou!» Quem o matou fomos todos nós, vós mesmos e eu! Os seus algozes somos nós todos! E como o fizemos? Como conseguimos engolir todo o mar? Quem nos deu a esponja para apagar todo o horizonte? Que fizemos nós, quando soltámos a corrente que ligava esta terra ao seu sol? Para onde se dirige ela agora? Para onde vamos nós? Para longe de todos os sóis? Não estaremos a precipitar-nos para todo o sempre? E a precipitar-nos para trás, para os lados, para a frente, para todos os lados? Será que ainda existe um em cima de um em baixo? Não andaremos errantes através de um nada infinito? Não estaremos a sentir o sopro do espaço vazio? Não estará agora a fazer mais frio? Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite? Não teremos de acender lanternas em pleno dia? Será que ainda não estamos a ouvir o ruído que fazem os coveiros a enterrar Deus? Ainda não nos terá chegado o cheiro da decomposição divina? Porque até os Deuses se decompõem! Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e de mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? Qual a água que nos lavará? Que solenidades de desagravo, que jogos sagrados haveremos de inventar? A grandiosidade deste acto não será demasiada para nós? Não teremos de nos tornar nós próprios deuses, para parecermos apenas dignos dele? Nunca existiu acto mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer parte, mercê deste acto, de uma história superior a toda a história até hoje!»
Aqui o louco calou-se e fitou de novo os seus ouvintes; também eles se calaram e o olharam espantados. Ele, por fim, lançou ao chão a lanterna, que se desfez em pedaços e se apagou. «Cheguei cedo demais», disse então, «o meu tempo ainda não é este. Este acontecimento extraordinário há-de vir ainda, transita ainda, não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O relâmpago e o trovão levam o seu tempo, a luz dos astros leva o seu tempo, os actos, mesmo depois de executados, levam o seu tempo a ser vistos e ouvidos. E este acto está ainda mais longe dos homens do que os astros mais longínquos. E, no entanto, foram os homens que o praticaram
Conta-se ainda que o louco entrou nesse mesmo dia em várias igrejas e aí cantou o seu requiem eternam deo. Expulso dos templos e interrogado, ripostou sempre apenas isto: «Que são agora ainda estas igrejas senão os túmulos e os monumentos funerários de Deus?»

Nietzsche, Gaia Ciência, §125, Relógio d’Água, Lisboa 1998.

sábado, 27 de maio de 2017

Uma alegria escondida? Será um tesouro?



A alegria, que foi a pequena publicidade do pagão, é o gigantesco segredo do
cristão. E no fechamento deste caótico volume torno a abrir o estranho livrinho
do qual proveio o cristianismo; e novamente sinto-me assombrado por uma
espécie de confirmação. A tremenda figura que enche os evangelhos ergue-se
altaneira nesse respeito, como em todos os outros, acima de todos os pensadores
que jamais se consideraram elevados.
A compaixão dele era natural, quase casual. Os estóicos, antigos e
modernos, orgulhavam-se de ocultar as próprias lágrimas. Ele nunca ocultou as
suas; mostrou-as claramente no rosto aberto ante qualquer visão do dia a dia,
como a visão distante de sua cidade natal. No entanto, alguma coisa ele
ocultou. Solenes super-homens e diplomatas imperiais orgulham-se de conter a
própria ira. Ele nunca a conteve. Arremessou móveis pela escadaria frontal do
Templo e perguntou aos homens como eles esperavam escapar da danação do
inferno. No entanto, alguma coisa ele ocultou. Digo-o com reverência; havia
naquela chocante personalidade um fio que deve ser chamado de timidez.
Havia algo que ele encobria constantemente por meio de um abrupto silêncio
ou um súbito isolamento. Havia uma certa coisa que era demasiado grande para
Deus nos mostrar quando ele pisou sobre esta nossa terra. Às vezes imagino que
era a sua alegria.
 
                   G. K. Chesterton, Ortodoxia, última página...

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

O que eu creio


Creio que a vida não é uma aventura para se viver segundo a moda corrente,
mas um empenho no plano que Deus tem para cada um: um projecto de amor que transforma a nossa existência.

Creio que o que melhor pode acontecer a um homem é encontrar Jesus Cristo, Deus Encarnado.
N'Ele tudo - misérias, pecados, história, esperança - assume nova dimensão e significado.

Creio que todo o homem tem capacidade de renascer para uma vida genuína e digna em qualquer altura da vida.

Compreendo profundamente que a graça de Deus não só tem poder para me fazer livre,
mas até de vencer o mal.

Thomas Merton



sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Dá-me uma palavra Senhor.


Dá-me uma palavra Senhor.

Uma palavra semelhante, «palavra abreviada», pronunciada por Vós, uma palavra que não diga tudo ao mesmo tempo, mas uma coisa só que eu fosse capaz de compreender, restituir-me-ia a confiança. Sim, a Vossa palavra só me atingirá com a condição de ser uma palavra humana. Senhor, não me digais tudo o que sois na Vossa imensidade; dizei-me somente que me amais e que sois bom para mim. Mas não o digais na Vossa linguagem divina, com palavras que signifiquem tanto o Vosso amor como a Vossa justiça inexorável e o Vosso poder de destruição. Dizei-o antes na minha linguagem, para evitar o meu medo de que a palavra amor possa conter outra coisa além da Vossa bondade e misericórdia acolhedora.

Ó Deus infinito, Vós dignastes-Vos dirigir-me esta palavra! Ordenastes ao oceano da vossa imensidade que não fizesse irrupção no miserável muro que envolve o campo da minha vida, bem ao abrigo da Vossa grandeza infinita. Quisestes que só o orvalho da Vossa clemência descesse sobre esta pequenina terra que é a minha. Viestes até junto de mim numa palavra humana, pois Vós, o Deus infinito, Vós sois o Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele falou-nos uma linguagem humana, e não mais pode a palavra humana significar qualquer outra coisa que possa ser terrível para mim. Pois quando Jesus afirma que nos ama e que Vós amais através d’Ele, esta palavra sai de um coração humano. E num coração humano esta palavra só tem um sentido, um sentido cheio de felicidade. Quando este coração humano nos ama, o Coração do Vosso Filho, um coração limitado como o meu pobre coração – que seja bendito por isto! – então o meu coração fica tranquilo. Quando este coração me ama, sei que o seu amor é só amor. Ora, Jesus disse efectivamente que me ama, e a sua palavra saiu de um coração humano. Este coração é Vosso, ó Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo. Se este coração humano do Vosso Filho é infinitamente maior do que o meu, infinitamente mais rico e mais amplo do que o meu pobre coração, então é somente inexplicavelmente mais rico no amor e inefavelmente mais rico para a bondade, a qual só pode ser bondade e amor, e por isso não encobre em si o terror da vossa própria infinitude, a qual é tudo ao mesmo tempo.

Concedei-me, Deus infinito, que me agarre sempre a Jesus Cristo, meu Senhor. Que o seu Coração me manifeste como Vós sois para mim! Desejoso de saber quem sois, eu contemplarei o seu Coração. Quando me contento com fixar o olhar do meu espírito na Vossa imensidade, na qual Vós sois tudo em cada coisa, deixo de ver e as trevas que me rodeiam são mais insuportáveis do que todas as minhas noites humanas. Eis por que, ó Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo, eu levantarei os olhos para o coração humano do Vosso Filho, e fico com a certeza de que me amais.

Mas eis, Senhor, um último pedido: tornai o meu coração semelhante ao Coração do Vosso Filho, e tão amplo e tão rico em mim, para que nele meus irmãos encontrem o caminho para Vós, para que durante a minha curta vida, um deles, ao menos, entre por esta porta para ficar a saber que Vós o amais. Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo, concedei-me que Vos encontre no seu Coração.

Karl Rahner, In Apelos ao Deus do silêncio.

sábado, 26 de novembro de 2011

Vigiai!


PRIMEIRO DOMINGO DO ADVENTO (ANO B)

Senhor, nosso Deus, fazei-nos voltar para Vós.
O Senhor rasga os céus e desce até à nossa vida
Para nos arrancar da sonolência e da apatia.
Distribui por nós, os seus servos, as tarefas do Seu Reino.
Torna-nos firmes até ao fim.
N’Ele esperamos, n’Ele confiamos.
Não esperamos em vão.
O Senhor prepara algo novo
Para aqueles que não perdem a esperança
E sabem olhar na Sua direcção.
Vigiai!

Dai-nos, Senhor, o ânimo para criarmos vida,
Para a inventarmos constantemente,
Sem nos deixar arrastar na vã corrente do desalento.
Vigiamos com o teu olhar de esperança sobre a humanidade.
Caminhamos em comunidade para o vosso Reino,
Seguros da Vossa vinda em cada dia.

Meu Deus, eu não Vos amo

Meu Deus, eu não Vos amo.
Não o desejo.
Aborreço-me convosco.
(É preciso ser franco com Deus. Se soubésseis como me aborreço, eu.)
Talvez mesmo nem acredite em Vós.
Mas olhai-me cara a cara.
Abrigai-Vos um momento na minha alma.
Ordenai-a com um sopro,
Sem parecer, sem nada me dizer.
Se tendes desejo de que creia em Vós,
Dai-me a fé.
Se tendes desejo de que Vos ame,
Dai-me o amor.
Eu não o tenho e não posso fazer nada.
(É bem verdade, não posso fazer nada.)
Dou-Vos o que tenho, a minha fraqueza, a minha dor,
E esta ternura que me atormenta
E que vedes bem.
E este desespero.
E esta vergonha louca.
O meu mal, nada senão o meu mal, é tudo.
E a minha esperança.
Algumas vezes também apresento-me a Deus
Como uma carregadora de sofrimentos,
Carregada com todos os fardos da vizinhança.
E digo-lhe: Senhor, não me dês atenção a mim.
Não posso agradar-Te.
Olha somente para os sofrimentos que Te trago
Como uma pobre comissária que vem da parte dos outros.
Eis o mal do meu pai, eis o mal do meu amigo,
O mal deste ou daquele outro.
Ei-lo, meu Deus!
Procuráveis-me? Mas que quereis de mim?
Não tenho nada para Vos dar.
Desde o nosso último encontro,
Não pus nada de lado para Vós. Nada.
Nem uma boa acção. Estava muito cansada.
Nem uma boa palavra. Estava demasiado triste.
Nada senão a aversão de viver, o aborrecimento, a esterilidade.
E Deus diz: Dá!
A pressa de ver todos os dias o dia acabado sem servir para nada.
O desejo de repouso longe do dever e dos seres.
O desapego do bem a fazer.
A aversão a Vós, oh, meu Deus!
- Dá!
O torpor da alma com o remorso da minha moleza,
A moleza mais forte que o remorso.
- Dá!
A necessidade de ser feliz, a ternura que quebra,
A dor de ser eu, sem retorno.
- Dá!
Perturbações, medos, dúvidas.
- Dá!
Senhor, como um trapeiro, ides recolhendo resíduos, imundices?
Que quereis fazer disto, Senhor?
- O Reino dos Céus.


De Marie Noël
In A Mensagem de Jesus, de François Varillon, SJ, AO, Braga 2007, págs. 192-194.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

JEANNE BARBEY, a doença como fonte criadora




Com 33 anos de idade, Jeanne Barbey é uma jovem e talentosa compositora francesa de música sacra.

Desde a mais tenra idade, Jeanne apaixonou-se pela música, mais particularmente pela música sacra, praticando e dirigindo coros de canto religioso.

Os estudos em história, iniciados na prestigiada universidade de Sorbonne, em Paris, são interrompidos em razão da mucoviscidose, uma doença genética grave que foi condicionando cada vez mais a sua vida.

Jeanne refugia-se na música, nomeadamente na composição. Em 2004, sabendo que uma jovem comunidade monástica se instalou na Abadia de Sainte-Marie de Lagrasse que procuram restaurar, ela decide ajudá-los. Compõe um “Te Deum” que será interpretado perante 1500 pessoas em Janeiro de 2006. Tal foi o sucesso da venda da gravação do espectáculo que Jeanne percebeu que a música passaria a ser o seu contributo para o mundo.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A doença como dom
 
Na verdade, a doença hereditária que lhe afecta o sistema respiratório começou a condicionar de tal maneira a sua vida que se questionou sobre o sentido da sua existência. Que fazer do tempo quando não se pode fazer nada? Depois da depressão inicial, Jeanne encara a sua enfermidade não como um impedimento à sua felicidade mas como uma oportunidade.
Cada manhã tem de fazer 3 horas de exercícios para poder respirar, permitindo-lhe alguma energia que dedica quase exclusivamente à criação musical. Por vezes, quando o esforço é demasiado intenso, necessita recuperar durante vários dias. Limitada a apenas 35% da sua capacidade respiratória, Jeanne, no entanto, optimiza a sua existência: “Se não houvesse doença não haveria música nem composição”. Se poder compor é um dom, então a enfermidade não pode ser tomada como um castigo mas como um presente, explica Jeanne. Nos momentos mais dolorosos ela descobre-se “mimada por Deus” porque sente esses instantes como um apelo ao essencial.
Consciente que a dor não é propriamente uma "amiga", parte do princípio que o sofrimento vão é inútil e absurdo. Assim, Jeanne afirma convictamente que “a melhor forma de sofrer é oferecer a dor”. “Tenho perfeitamente a sensação de estar na via que é a minha, e isso é a felicidade… é a confiança total daquilo que Deus quer para nós, é a esperança, aconteça o que acontecer… A partir do momento que aceitamos tudo, tornamo-nos felizes”.
Mas para Jeanne, aceitar não é passividade mas sim confiança.
 
 
A fé como força
 
Sabendo que vive na iminência da morte, Jeanne vive serena e intensamente cada dia. “Nunca digo que não tenho sorte… nunca vivi desesperada… a vida nunca é inútil”.
Onde encontra ela tal força e alegria?
Jeanne confessa que compreende mal a confusão entre felicidade e a ilusão actual da perfeição e bem-estar físicos como garantia de realização humana. “Sou doente mas não sou infeliz”, defende.
A sua relação com Deus ilumina a sua vida e encontra na oração a força necessária para enfrentar a evolução degenerativa da doença. A intimidade com Deus permite “momentos em que nos sentimos amados”. “O amor da vida e a esperança do céu vão juntas porque é Deus que nos dá a vida.” Frequentemente, esclarece ela, nas horas de maior sofrimento, a oração proporciona-lhe alívio e inspiração para criar.
Jamais duvidou da sua fé e esta permite-lhe perceber a lógica da vida, discernindo sempre o sentido da existência e a vivência de todos os acontecimentos.
Apesar das graves limitações de saúde, a sua alegria e entusiasmo são uma sinfonia a/de Deus.
Aqui fica um exemplo do seu dom musical, fecundado pela sua doença:


http://www.dailymotion.com/video/xdqw1w_te-deum-barbey_music#from=embediframe


In http://sdpv.blogspot.com/